Calotes, mentiras e atrasos: profissionais preferem a várzea para receber em dia
Bruno DoroDo UOL, em São Paulo
Luizinho tem 29 anos e poderia estar defendendo um time profissional. Mas está jogando no futebol de várzea de São Paulo. Decisão errada? Você diz isso porque só olha para o sucesso das estrelas dos times da primeira divisão. Amplie um pouco o foco de visão.
Pergunte para quem já passou por times de divisões menores. Fale com quem já jogou em times do interior do país. Você vai descobrir que o cenário amplo do futebol não é milionário como aquele da TV. “Rodei muito pelo interior. E é sempre a mesma coisa. Você joga três meses. Recebe só um. E o dinheiro não cai mais”, conta Luizinho.
Na várzea, não. O dinheiro é menor, o jogador não tem vínculo empregatício, mas depois de todos os jogos o envelope com o bicho está lá. É sagrado. “Você não recebe tão bem. Os valores são menores. Mas recebe sempre. Estou há três anos na várzea. E sempre recebi em dia”, conta o atacante.
Calote na Polônia
E não ache que isso só acontece no Brasil. Luizinho defendeu um time polonês por seis meses. Disputou a primeira divisão local. Sua equipe acabou rebaixada e o prometido pela transferência nunca caiu na conta. “Foi uma experiência boa, de vida. Passei muito frio, conheci outra cultura, aprendi como é viver em outro país. Mas não recebi”, lembra.
Voltou para o Brasil Teve propostas para rodar pelo Brasil. Poderia ter jogado no Centro Oeste, no Nordeste. Preferiu ficar em São Paulo. “É claro que não é fácil. Você tem de jogar por mais de um time, cuidar do físico. Alguns times até ajudam se você se machuca, mas nunca é bom estar parado. Mas consigo sobreviver do futebol, mesmo sem ser profissional”, conta o jogador.
A aposentadoria dos campos acabou sendo benéfica. Ele é o atual artilheiro da Copa Kaiser, o principal torneio amador da cidade de São Paulo. É, também, um dos destaques do Jardim São Carlos, de Guaianases, um dos melhores times do torneio.
Problemas no Nordeste
Bill, de 18 anos e 1,93m, também está entre os principais goleadores da Copa Kaiser. E, mesmo com a pouca idade, já sabe como é difícil ter sucesso no futebol profissional. No ano passado, um empresário o levou para o Olímpico, do Sergipe.
O que deveria ser a grande oportunidade foram meses desperdiçados. “Passei o tempo treinando por lá. Mas nunca tive chance. Acabou o período de testes, não fui aprovado e voltei para São Paulo”, conta o garoto. Na capital paulista, sem contrato com o clube, acabou também o acordo com o empresário.
Quem o viu em campo avisa: além de grande, ele é um jogador técnico, que se posiciona bem na área. E ainda chuta bem. Falta, no entanto, alguém que o ajude. “Hoje, estou sem empresário, sem ninguém para ajudar. Assim, é quase impossível encontrar um clube”, conta.
Mentiras em São Paulo
Com toque refinado e grande visão de jogo, o motoboy Rafael da Silva Nascimento assume o papel de maestro. Rafinha é o camisa 10 do Internacional do Moinho Velho, que, como o Inter do Jaraguá, também já deu adeus à Copa Kaiser. E, como Bill e Luizinho, já tropeçou no futebol profissional.
Aos 27 anos, já tentou a sorte no futebol profissional. Tinha 23 anos, assinou um contrato com o CATS, o Taboão da Serra, mas nada deu certo. “Infelizmente, não pude trabalhar com pessoas sérias. Foram muitas promessas e pouca coisa foi cumprida. Fiquei sem receber e tive de desistir. Precisa pagar as contas. Virei motoboy, mas ainda sonho em viver do futebol. Se Deus quiser, ainda dá tempo”, fala o jogador.
O caso é parecido com o do atacante Macedo, artilheiro da Kaiser no ano passado. Jogador do Cantareira, de Heliópolis, ele é profissional da várzea, defende três, quatro equipes por fim de semana. Construiu casa, comprou moto, tudo com o dinheiro do futebol amador. Algo que o futebol profissional não permitiu.
Quando tinha 18 anos, Macedo se submeteu a uma bateria de testes no Juventus, da Móoca, um dos times mais tradicionais da cidade. “Fiz seis peneiras. Fui aprovado. Mas quando ia ser profissionalizado, o técnico foi demitido. Quando chegou o novo treinador, mandou todo mundo embora. Eu também. Foi uma desilusão muito grande”.
Vítimas até entre estrangeiros
E não são só os brasileiros que sofrem com as incertezas do futebol nacional. No Ajax, da Vila Rica, por exemplo, dois nigerianos estão provando que é possível viver do futebol amador no País do Futebol. Fred Odebe e Daniel Eze chegaram ao país para jogar bola, mas acabaram esquecidos.
O primeiro é zagueiro e já defendeu até mesmo a seleção do país. Chegou para vestir a camisa do Grêmio Barueri, justamente nos anos das mudanças de sede – o time foi para Presidente Prudente e depois voltou para a grande São Paulo entre 2010 e 2011. Acabou esquecido pelos empresários que o trouxeram para o país e hoje joga no Ajax, da Vila Rica.
O segundo é centroavante. Jogou nas categorias de base do Hertha Berlin, mas problemas de documentação o mandaram para São Paulo. Fez testes na Ponte Preta, no Flamengo de Guarulhos. Acabou aprovado no Bahia de Feira de Santana. Então, veio a lesão no joelho esquerdo. E, como Fred, foi esquecido por quem o trouxe ao Brasil.
Teve, inclusive, de operar o joelho pelo SUS, já que não tinha vínculo com nenhuma equipe para bancar o procedimento, nem apoio de um empresário para arcar com os custos. Recuperado, é um dos destaques do Ajax. Os dois, aliás, foram campeões da Copa Kaiser do ano passado. “É como se fosse um título profissional. Eu não consegui virar profissional na Europa e em alguns lugares do Brasil, mas tenho orgulho de dizer que sou profissional da várzea agora", disse o atacante.
O Ferroviário buscando o sonho!